quinta-feira, abril 25, 2024

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‘tristeza e a saudade no olhar’, diz tio sobre menina de 4 anos que viu mãe ser morta pelo pai no Paraná

*Para preservar a identidade da criança, apenas as iniciais de seu nome foram citadas na reportagem

A história da pequena M. S.*, de quatro anos, foi completamente alterada no ano passado quando viu a mãe ser morta a tiros pelo próprio pai. Ela estava no local quando o crime aconteceu, em Reserva, nos Campos Gerais do Paraná.

Segundo o tio da criança, Carlos Speke, desde que presenciou o assassinato da mãe, M. tem tido as comportamentos mais “revoltados”, se assusta durante a noite e relembra com frequência do que viu.

“Quando ela viu a mãe dela morta, ela deitava em cima, abraçava, chamava pela mãe. Ela era uma menina muito calma, depois que aconteceu isso ela começa a bater o pé para a gente, começa a chorar. Sem contar que ela relembra o caso. Se tiver algum adulto conversando e tocar no assunto do que aconteceu, ela conta, pega a pessoa e leva para cada lugar da casa mostrando onde e como foi”, contou.

A mãe, Adriana Speke, foi morta em 6 de dezembro do ano passado, aos 28 anos. De acordo com a Polícia Militar, o ex-marido dela invadiu a casa e atirou contra a jovem e contra o pai dela, de 68 anos, que também morreu.

Pai e filha não resistiram aos ferimentos e morreram — Foto: Foto Autorizada/Arquivo Pessoal

Após o crime, o autor dos disparos também tirou a própria vida. O irmão de Adriana conta que, desde o assassinato da mãe, a sobrinha parou de se referir ao homem como pai.

“Ela o chama ou de tio ou de monstro, fala que aquele monstro matou a mãe dela. Antes ela chamava ele de pai, depois que aconteceu isso, não chama mais”, explicou.

De acordo com a psicóloga e professora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) Maria Cristina Neiva de Carvalho, reações como a de M.S. são normais após um trauma e os danos da violência presenciada “ficam para a vida toda”.

“Presenciar um assassinato é uma situação emocionalmente forte, se você imaginar isso dentro do âmbito familiar, que teoricamente seria lugar de amor e resolução de conflitos. O impacto é muito grande na vida da criança. Ela perde uma pessoa de referência, fundamental para a vida dela. A criança está, sim, tendo seus direitos violados, ela é atingida também”, afirmou.

Ainda conforme a psicóloga, as manifestações da dor podem aparecer de diferentes formas em cada criança e variar de acordo com a idade.

Elas podem desenvolver problemas físicos, em especial na primeira infância, além de mudanças comportamentais.

“As consequências psicológicas podem desenvolver imediatamente todos os sintomas do estresse pós-traumático. A criança pode generalizar a falta de confiança para todas as pessoas e ter dificuldade de fazer amizade. Pode ficar introspectiva, tímida, ou fazer o oposto também. Pode acabar desenvolvendo uma reação ao mundo com toda aquela violência que ela recebeu. Como se fosse devolver”, explicou.

No caso de M.S., as sessões com a psicóloga começaram no começo deste mês. Uma vez por semana, a criança vai à terapia.

Ela retornou para a escola e, segundo o tio, tem uma boa relação com outras crianças.

Mudança na rotina

Carlos também estava no dia do crime e chegou a levar um tiro. Recuperado, ele hoje ajuda a mãe a cuidar das crianças da irmã.

Segundo ele, a rotina de toda a família mudou depois do crime. Ele deixou o emprego e a casa que tinha em Ponta Grossa, na mesma região, e voltou para Reserva para ficar com a família.

Além de M.S., Michele também tinha uma filha ainda bebê, de sete meses.

A família tenta encontrar formas de dar apoio, amor e acolhimento às sobrinhas, que ficaram órfãs. Carlos contou que a saudade e as lembranças aparecem no dia a dia, em atitudes.

“Quando ela pergunta se a mãe vai voltar, a gente diz que a mãe virou uma estrelinha. À noite, ela olha para o céu e diz que está olhando para a mãe, que é a estrelinha. Ela não é de chorar. Pergunta se a mãe vai voltar, fala que sente falta. A gente percebe pelo olhar a tristeza e a saudade, nas atitudes. À noite ela até dorme bem, mas às vezes acorda perguntando sobre qualquer barulho, tem medo”, disse.

Sobre a bebê, Carlos contou que o primeiro mês foi o mais difícil. Segundo ele, ela chorava constantemente mesmo quando acolhida por outras pessoas da família, mas que , agora, está bem e “tranquila”.

Impactos para a criança

A psicóloga Maria Cristina Neiva de Carvalho explica que o feminicídio, especialmente quando praticado dentro de casa, fere um dos principais pontos para o desenvolvimento de uma criança: a família.

“A família para qualquer criança é a matriz de identidade, onde a gente desenvolve a noção de quem somos, de socialização, onde a gente aprende o que pode e o que não pode, de vínculo, onde a gente aprende como eles se estabelecem e de pertencimento, de proteção. Todas essas matrizes ficam muito abaladas. A criança pode se sentir sem valor, que ninguém pensou nela”, afirma.

Maria Cristina também citou a questão da violência transgeracional, isto é, a replicação do comportamento de uma geração para a outra. Segundo ela, ao ver o comportamento violento, a criança pode assimilar o padrão como o correto e, no futuro, repetir dentro de uma relação.

“Toda criança no ambiente familiar tem nas relações pessoais, dentro de casa, os modelos de como a gente enfrenta as situações, como a gente resolve conflitos, como a gente supera dificuldades. Quando ela vê um feminicídio, ela pode aprender e internalizar que essa é a uma forma de resolver as coisas”.

Além disso, a violência transgeracional também pode se evidenciar na normalização da violência, em especial por parte de mulheres. Ao verem isso acontecer dentro de casa, elas podem vir a se submeter ao mesmo ciclo no futuro.

Por isso, segundo a psicóloga, é fundamental que qualquer pessoa envolvida em um processo de violência contra a mulher, em especial a criança, tenha acompanhamento psicológico para que possa seguir a vida.

“Ela nunca vai deixar de lembrar, provavelmente, a menos que faça bloqueio – o que também não é bom-, mas ela vai ter formas de conviver com o que aconteceu de um jeito mais saudável para ela própria, para a vida”, enfatizou.

Feminicídio no Paraná

Desde 2015 o Código Penal prevê o feminicídio como qualificador do crime de homicídio. A lei considera que o crime se deu por razões ligadas à “condição do sexo feminino” quando, por exemplo, envolve violência doméstica e familiar; menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

No Paraná, entre janeiro e setembro de 2021, 49 mulheres morreram vítimas de feminicídio, de acordo com dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp). Durante todo o ano de 2020, 73 mulheres foram mortas pelo fato de serem mulheres.

Até a publicação desta reportagem, a Sesp não tinha um balanço final de 2021, nem os números registrados neste ano.

De acordo com as autoridades, mensurar o número de crianças que perdem a mãe para o feminicídio é um controle “difícil” pois, pela lei, esses órfãos não precisam ser necessariamente encaminhados para a Justiça. 

Proteção judicial às crianças

De acordo com o procurador Francisco Zanicotti, da Vara da Infância do Ministério Público do Paraná (MP-PR), qualquer tipo de violência contra a mãe de uma criança é uma violência contra a própria criança.

Em alguns casos, quando notificados pela Polícia Militar ou pelo Conselho Tutelar, o MP-PR entra no caso e passa a acompanhar a situação da criança, como em casos de feminicídio.

Sem a mãe – e geralmente com o pai preso -, os órfãos costumam ser encaminhados para a chamada família extensa, como avós e tios, sem necessidade de judicialização do processo.

“Começa pela família extensa, que precisa ter o compromisso e garantir que vai manter a criação afastada do agressor. Depois, se não houver, procuramos uma família substituta por meio da adoção ou apadrinhamento afetivo. Em último caso, longe de ser o ideal mas necessário, é feito o acolhimento institucional”, explicou.

Apesar disso, o promotor também disse que as famílias extensas precisam em algum momento fazer um pedido do termo de guarda para que possam ter direitos como viajar com essas crianças.

No Paraná, o órgão não possui um núcleo específico voltado para crianças órfãs pelo feminicídio.

Segundo Francisco, a demanda não justifica o engessamento de uma área, mas nenhuma criança ou adolescente é afetado pois recebem atendimento de “uma equipe multidisciplinar preparada para lidar com pessoas do grupo em risco.

Ainda conforme o promotor, o foco deve ser o combate à violência contra a mulher desde o princípio, colocando fim ao ciclo.

“Todas essas violências impactam seriamente no desenvolvimento das crianças e adolescentes. Ainda há muito a ser feito, por isso a gente fala da intervenção precoce. Não pode deixar chegar em uma lesão corporal grave, feminicídio. Você vê um pai xingando uma mãe, então passou da hora de intervir”, frisou.

Fonte: G1PR

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