quinta-feira, abril 25, 2024

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Índios se aliam a antigos inimigos contra planos de Bolsonaro na Amazônia

Quem visse na semana passada um grupo de indígenas dividindo peixes assados em folhas de bananeira numa aldeia à beira do rio Iriri, no sul do Pará, não poderia imaginar que, há algumas décadas, vários dos povos ali presentes viviam em guerra.

As rixas do passado – que quase levaram um desses grupos ao extermínio – foram abandonadas em nome de um objetivo maior: lutar contra o que eles consideram ameaças do governo Jair Bolsonaro à Amazônia.

A lista de preocupações inclui planos do governo para autorizar o arrendamento e a mineração em terras indígenas e atitudes que estariam incentivando invasões por garimpeiros e madeireiros em seus territórios, além da contaminação de rios locais por agrotóxicos.

Espécie de Assembleia Geral da ONU de povos da floresta, o encontro que ocorreu na última semana na aldeia Kubenkokre, da Terra Indígena Menkragnoti, dos kayapós, reuniu representantes de 14 etnias indígenas e de quatro reservas ribeirinhas da bacia do Xingu.

A região, que ocupa partes do Pará e de Mato Grosso, tem área equivalente à do Rio Grande do Sul e é um dos últimos trechos preservados da Amazônia em sua porção oriental. Dados do boletim Sirad-X, porém, indicam que a região perdeu 68,9 mil hectares de floresta – equivalente à área de Salvador – entre janeiro e junho deste ano. O boletim é produzido pela Rede Xingu+, que organizou a assembleia e agrega 24 organizações ambientalistas e indígenas da região.

‘Um só inimigo: o governo do Brasil’

“Hoje nós temos um só inimigo, que é o governo do Brasil, o presidente do Brasil, e as invasões de não indígenas”, diz à BBC News Brasil Mudjire Kayapó, um dos líderes presentes. “Temos brigas internas, mas, para lutar contra este governo, a gente se junta”, ele afirma.

A organização do encontro envolveu uma logística complexa. Indígenas deixaram suas aldeias rumo às cidades mais próximas, onde foram recolhidos por ônibus fretados.

Mapa Xingu
Image captionMapa com as terras indígenas e unidades de conservação na bacia do Xingu, no Pará e em Mato Grosso; em vermelho, a Terra Indígena Menkragnoti, onde ocorreu o encontro

Único veículo jornalístico não indígena a cobrir o evento, a BBC News Brasil iniciou a jornada em Sinop (MT). De lá, foram cerca de sete horas de ônibus pela BR-163 e outras sete numa estrada de terra em mata fechada até a aldeia, que tem cerca de 500 moradores.

Já no interior da terra indígena, uma vara de porcos-do-mato cruzou a pista à frente do ônibus. Avisados, caçadores kayapós foram ao local na manhã seguinte. Voltaram com três porcos, que acabaram assados e servidos aos visitantes junto com carne de paca.

O cardápio também oferecia arroz e feijão, incluídos para atender paladares mais sensíveis, além de peixes pescados no Iriri servidos em folhas de bananeira.

Os debates ocorreram na casa dos homens, construção no centro da aldeia, cercada por casas dispostas em um grande círculo. Conhecidas pelas delicadas pinturas corporais, as mulheres da aldeia raramente apareciam no encontro e passavam os dias entre as roças e suas casas – detalhe que gerou uma saia-justa com uma visitante ribeirinha (leia mais abaixo).

Missão de paz

Povo indígena mais numeroso do Xingu, com cerca de 12 mil integrantes, os kayapós – que se autodenominam mebêngôkre – fizeram questão de sediar o evento, o primeiro encontro da Rede Xingu+, numa aldeia indígena (as três assembleias bienais anteriores foram em cidades).

Ao sediar a reunião, eles queriam selar de vez a paz com os vizinhos. “Não vamos repetir o passado, vamos ter união daqui para a frente”, discursou Kadkure Kayapó, um dos caciques da aldeia.

Um dos resultados do evento foi a criação de um conselho entre as organizações participantes para unificar demandas e agilizar sua articulação política. Os kayapós também buscavam fortalecer alianças com outros grupos num momento em que o próprio povo está dividido.

Doto Takakire
Image captionUm dos anfitriões do evento, Doto Takakire aponta trechos desmatados nas bordas da bacia do Xingu

Em duas das quatro terras indígenas da etnia, alguns líderes têm permitido a ação de garimpeiros e madeireiros. A situação é mais grave na Terra Indígena Kayapó, onde os rios Fresco e Branco foram contaminados por mercúrio e desfigurados por balsas e retroescavadeiras usadas pelos garimpeiros.

Assédio de garimpeiros

Para Doto Takakire, um dos anfitriões do evento, a proposta do governo de liberar a mineração em terras indígenas tornou alguns líderes mais suscetíveis ao assédio de garimpeiros, que oferecem dinheiro em troca da permissão para atuar nos territórios.

“Depois que eles (líderes indígenas) pegam o dinheiro fácil, viciam e não querem mais trabalhar. É algo humano: acontece com indígenas e não indígenas”, afirma.

O garimpo é hoje proibido em terras indígenas. A liberação da atividade, tratada pelo governo Bolsonaro como prioritária, depende da aprovação de uma lei pelo Congresso.

Outra causa para o aumento do garimpo, segundo Takakire, foi a diminuição nas multas aplicadas pelo Ibama, órgão responsável por combater crimes ambientais em terras indígenas. Até o meio de agosto, o número de autuações do órgão caiu 30% em relação à média dos últimos três anos para o mesmo período.

BBC

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