terça-feira, abril 23, 2024

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O estudante de medicina que morreu de sarampo

Até recentemente, as autoridades de saúde pública acreditavam ter praticamente eliminado o sarampo da Europa. Mas agora, os casos da doença potencialmente mortal estão aumentando devido a uma forte queda nas taxas de vacinação.

O país mais atingido é a Ucrânia, que sofre a pior epidemia de sarampo do mundo, com mais de 100 mil casos desde 2017.

No outono de 2017, Oksana Butenko se despediu do filho adolescente, Serhiy, quando ele saiu de casa para estudar medicina na universidade.

Dezoito meses depois, em fevereiro deste ano, ela levou o corpo do filho de volta para casa, no oeste da Ucrânia, em um caixão.

O jovem que planejava dedicar a vida a curar doenças morreu subitamente aos 18 anos, vítima de uma doença que as autoridades de saúde dizem ser completamente evitável – o sarampo, que até alguns anos acreditava-se estar praticamente erradicado na Europa.

Serhiy Butenko
Image captionSerhiy Butenko morreu de pneumonia provocada por sarampo

“Ele era um menino brilhante”, diz Oksana, do lado de fora da pequena igreja de cúpula prateada onde o velório do filho foi realizado.

“Ele era a coisa mais preciosa da minha vida. O sonho dele era ser médico, ele vivia para isso.”

“Eu não sei por que isso aconteceu. Lembro da minha infância, todo mundo pegou sarampo, mas todo mundo se recuperou.”

O sarampo é uma doença altamente contagiosa da qual a maioria das pessoas se recupera após algumas semanas de febre e erupção cutânea desagradável. Mas, em alguns casos – um ou dois em cada mil -, pode levar a complicações fatais, mais comumente pneumonia.

Serhiy morreu de pneumonia provocada por sarampo após vários dias internado no Centro de Terapia Intensiva (CTI), com a infecção consumindo seus pulmões, incapaz de respirar sem ventilação artificial.

Ele foi uma das 39 pessoas que morreram de sarampo na Ucrânia desde o início do surto atual, em 2017.

O sarampo está avançando em toda a Europa – o número de novos casos triplicou no ano passado, chegando a 82.596. A maioria deles está concentrado na Ucrânia, onde 53.218 pessoas contraíram a doença.

O Brasil vinha de uma sequência de zero casos em 2015, 2016 e 2017 – em 2016, inclusive, ganhou um certificado da Organização Mundial da Saúde (OMS) de eliminação do sarampo.

Mas, então, veio 2018: 10.262 casos. No boletim mais recente do Ministério da Saúde, divulgado em junho, o Ministério da Saúde confirmou que houve 123 casos no país neste ano – mostrando uma tendência de queda acentuada em relação ao ano anterior.

Enfermeira ao lado de criança com catapora
Image captionA Ucrânia teve um aumento no número de casos de sarampo nos últimos dois anos

“Temos essa tempestade perfeita que aconteceu nos últimos 40 anos e culminou no problema que temos agora”, diz a ministra da saúde do país, Ulana Suprun. Ela está se referindo ao declínio drástico na proporção de pessoas que estão protegidas contra o sarampo pela vacinação.

Até aproximadamente 2001, diz ela, a Ucrânia importava cepas de vírus da vacina contra sarampo da Rússia que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou posteriormente ser ineficaz.

Como resultado, “cerca de 44% dos casos de sarampo na Ucrânia são em adultos – que achavam que haviam sido vacinados, mas a vacina não era eficaz”.

Houve um problema com a cadeia de refrigeração – a vacina precisa ser mantida na condição térmica adequada para permanecer eficaz.

Em meio ao colapso econômico que se seguiu à dissolução da União Soviética em 1991, com hospitais mal equipados e fornecimento de energia incerto, a vacina nem sempre foi mantida na temperatura correta.

Oles Pohranychny em uma sala de aula
Image captionOles Pohranychny: a desconfiança da vacinação reflete um mal-estar mais amplo na sociedade

Mas há um problema ainda maior do ponto de vista psicológico. Com o passar dos anos, cada vez mais gente se recusou a tomar vacina e a imunizar os filhos.

“É uma questão de confiança”, diz Oles Pohranychny, diretor de uma escola primária particular na cidade de Lviv, na Ucrânia.

Dois anos após a epidemia, apenas metade de seus alunos eram vacinados contra o sarampo.

“A vacina é algo que eu tomo, e acredito que vai me proteger contra algo. Agora nossa escola tem filhos de pais que nasceram na década de 1990, quando ninguém acreditava em nada. Nem em uns ao outros, nem na medicina, nem no Estado.”

“Em toda a antiga União Soviética, houve um período de transição de uma sociedade paternalista para uma sociedade em que você é responsável por si mesmo – mas você não sabe como ser responsável por si mesmo. Todo mundo em volta estava mentindo – é o que as pessoas pensavam nos anos 1990.”

“Você tinha que ter o punho cerrado e não confiar em ninguém. Caso contrário, você era um perdedor. A confiança era para os perdedores”, acrescenta.

Suprun, ministra da Saúde, responsabiliza a imprensa e os políticos por incentivar o clima antivacinação, principalmente após um incidente amplamente divulgado em 2008, quando um estudante chamado Anton Tishchenko morreu pouco depois de ser imunizado contra o sarampo – apesar de o relatório médico ter mostrado que sua morte não estava relacionada à vacina.


Na esteira dessa tragédia, as taxas de vacinação caíram tão drasticamente que, em 2016, apenas 31% da população estava imunizada pela MMR, vacina que protege contra sarampo, caxumba e rubéola – o nível mais baixo de imunização no mundo, menor até do que na África, como Suprun destacou.

A OMS recomenda que 95% das crianças sejam imunizadas com a vacina MMR para atingir o nível de imunidade de rebanho, em que todas as crianças – vacinadas e não vacinadas – estão protegidas contra sarampo, caxumba e rubéola.

Soldados ucranianos fazem fila para serem vacinados
Image captionSoldados ucranianos fazem fila para serem vacinados

Suprun diz que mesmo atualmente ela luta contra uma onda de desinformação.

“Nós temos políticos tentando obter votos dizendo que você não precisa ser vacinado, que é tudo uma grande trama dos governos ocidentais para tentar controlar a mente das nossas crianças, que a vacina é um grande plano das empresas farmacêuticas para entrar e fazer muito dinheiro na Ucrânia. Infelizmente, mesmo com 39 mortes, é difícil convencer as pessoas de que este é um problema real.”

A morte de Serhiy Butenko abalou, no entanto, seus colegas na Vinnitsa Medical University, na região central da Ucrânia.

“Houve uma sensação de vazio”, diz Oleh Yefymenko, chefe do conselho estudantil. “Muita gente conhecia ele, realmente sua história mexeu com todo mundo.”

O histórico médico mostra que Serhiy havia sido vacinado quando tinha um ano e seis anos de idade, conforme recomendam as autoridades de saúde. Mas a imunização não foi suficiente para protegê-lo, porque ele pegou o vírus do sarampo logo após adoecer com outra doença viral – mononucleose, também conhecida como febre do beijo.

“A mononucleose enfraqueceu o sistema imunológico dele, de modo que não era capaz de combater adequadamente o vírus do sarampo”, explica a médica Alexandra Popovich, que supervisionou o tratamento de Serhiy em seus últimos dias.

É possível que ele estivesse mais protegido se tivesse tomado um reforço recente da vacina.

Mas a lição mais importante a ser tirada da tragédia, diz Popovich, é que Serhiy não teria morrido se não tivesse sido exposto ao sarampo, se o nível da imunidade de rebanho na população estivesse alto o suficiente.

Após a morte de Serhiy, muitos colegas dele correram para se vacinar, conta o líder estudantil Oleg Yeminenko.

Oleh Yefymenko
Image captionOleh Yefymenko diz que a morte de Serhiy chocou outros alunos da universidade

Mas como estudantes de medicina, futuros médicos, não tinham pensado nisso antes? Na ocasião, o país já estava enfrentando surto de sarampo havia aproximadamente dois anos.

A diretoria da universidade afirmou à BBC que realizou uma grande campanha no ano passado para incentivar os alunos a se vacinarem, alcançando uma taxa de imunização de mais de 98%.

Segundo a instituição, os estudantes aprendem sobre vacinação “do ponto de vista da medicina baseada em evidências, estudando imunologia, dados estatísticos, contraindicações e consequências”.

Mas Kateryna Bulavinova, do Unicef, agência da ONU para as crianças, que tem ajudado o governo ucraniano na luta contra o sarampo, diz que a morte de Serhiy Butenko mostrou que os reitores das universidades não estão fazendo o suficiente, de uma maneira geral, para proteger os estudantes.

“Na minha opinião pessoal, esta é uma situação horrível porque era evitável”, afirma.

“Para mim, é um grande mistério, porque é o terceiro ano de surto na Ucrânia com estatísticas significativas de pessoas que pegaram sarampo. Mas ainda assim os reitores de todas as universidades de medicina não se posicionaram no que diz respeito à proteção dos estudantes.”

“A principal questão é em relação aos próprios profissionais de saúde. Temos cada vez mais jovens médicos que não têm ideia sobre imunização, ou duvidam da imunização, ou são contra a imunização”.

Ulana Suprun, ministra da saúde, também acredita que os próprios médicos são os principais propagadores de dúvidas em relação às vacinas.

Menino sendo vacinado em Lviv
Image captionAlguns médicos na Ucrânia aprendem que não vacinar é benéfico para as crianças no longo prazo

Ela diz que alguns estudantes de medicina aprendem que as vacinas não são necessárias. A justificativa é baseada na crença de que é melhor para uma criança contrair a doença, porque estaria imunizada assim pelo resto da vida.

“Quando você tem acadêmicos nesse nível ensinando aos novos médicos que eles não precisam vacinar as crianças, isso realmente gera confusão”, diz Suprun.

“Temos professores que acreditam que a vacinação contra o sarampo durante a temporada da gripe, de outubro a maio, por exemplo, é um procedimento perigoso, porque causará imunossupressão. Isso é um mito, é uma informação falsa. É perigoso para o país”, afirma Fedir Lapiy, consultor em imunização do governo.

Suprun diz que não é possível acabar com a desinformação por parte dos profissionais de saúde e acadêmicos da área médica porque as universidades são independentes e atualmente não há meios de retirar as qualificações profissionais. Mas um sistema para conceder licença a médicos, que tornará isso possível, está sendo introduzido agora.

Fedir Lapiy
Image captionFedir Lapiy diz que alguns acadêmicos estão espalhando mitos sobre a vacinação

Ela diz que muitos dos problemas que levaram à epidemia estão sendo superados. As vacinas são obtidas pelo Unicef, que ajudou o governo a visitar hospitais e clínicas para garantir a manutenção da cadeia de refrigeração.

“As vacinas que foram dadas no último ano ou nos últimos dois anos, sabemos que funcionam”, diz ela. “Vacinamos no ano passado mais de 900 mil pessoas e não tivemos nenhuma morte ou complicações sérias decorrentes da vacina.”

As brigadas de vacinação itinerantes percorreram as regiões mais atingidas pela epidemia para imunizar as crianças que não tinham sido vacinadas. A vacinação gratuita também está disponível para todos os adultos agora.

No ano passado, 90% das crianças de um ano e seis anos foram vacinadas contra o sarampo. Mas ainda resta uma enorme quantidade de crianças e adultos que não foram vacinados no momento certo nos anos anteriores.

E o Unicef ​​estima que até 30% dos certificados de vacinação podem ser falsificados.

“Quando os pais são informados que é necessário vacinar os filhos para que frequentem a escola, eles vão aos médicos e, infelizmente, compram certificados de vacinação”, explica Suprun.

Na região de Lviv, a mais atingida, ela conta que “quando fomos ao departamento de saúde (regional) e perguntamos quantas crianças precisariam ser vacinadas, nos disseram que de acordo com os registros eram 22 mil”.

“Mas quando fomos às escolas, e verificamos quais registros eram verdadeiros, descobrimos que 50 mil crianças precisavam ser vacinadas, porque 28 mil tinham certificados de vacinação falsos.”

Veronika Sidorenko e os filhos
Image captionA ativista Veronika Sidorenko não vacinou os filhos

Por lei, as crianças ucranianas têm que ser vacinadas contra certas doenças, incluindo sarampo, para frequentar escolas públicas. Mas a legislação nem sempre é respeitada, e também é contestada por alguns pais, incluindo Veronika Sidorenko, fundadora de um movimento chamado “Vacinação – Liberdade de Escolha” (em tradução livre).

Os três filhos dela não são vacinados.

“Quando comparei o risco de contrair a doença, contra a qual nós vacinamos, e o risco das consequências da imunização, decidi não vacinar”, diz ela.

De acordo com a OMS, o risco de sofrer uma reação alérgica grave ao vírus do sarampo é de um em cada um milhão. Mas Veronika desconfia das estatísticas da OMS. Ela acha que a campanha pela vacinação universal é impulsionada em parte pelo lobby da indústria farmacêutica.

“Se tivéssemos pesquisas em larga escala – digamos mil crianças não-vacinadas e mil vacinadas, e pudéssemos traçar suas vidas até os 50 anos – poderíamos afirmar que [a vacinação previne surtos de sarampo]. Mas nós não temos isso e ninguém vai fazer isso, então acredito que não podemos dizer com certeza.”

Quando questionada sobre o fato de que suas escolhas estão colocando outras crianças em perigo, ela diz não acreditar em imunidade coletiva.

Enquanto isso, a epidemia na Ucrânia continua a se alastrar, com quase tantos casos novos registrados nos últimos seis meses quanto em todo o ano passado. A 39ª vítima de complicações decorrentes do sarampo morreu neste mês.

“Esta é a era dos iPhones e de todos os tipos de tecnologia de ponta”, diz Kateryna Bulavinova, do Unicef.

“Ter um número tão alto de pessoas morrendo de uma doença completamente evitável é horrível.”

BBC

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