quarta-feira, abril 17, 2024

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O que o governo ainda precisa explicar sobre o funcionamento das escolas cívico-militares

A implementação de escolas cívico-militares no ensino básico e médio é um dos principais projetos do governo Bolsonaro para a educação.

Embora o governo tenha publicado o decreto de criação do programa com sua moldura básica, ainda se sabe muito pouco como esse plano funcionará, qual o seu escopo ou como será o financiamento.

O plano prevê atuação de militares da reserva na administração de escolas, mas também não está claro qual será o nível de interferência deles na área pedagógica.

Diferentemente das escolas totalmente militares, que são geridas somente pelo Exército e pensadas para os filhos de militares, nesse formato cívico-militar o currículo é determinado pelas secretarias de educação, mas os estudantes seguem regras definidas pelos militares.

Fora essa ideia geral e o fato de que os Estados podem escolher participar — 16 unidades federativas aderiram —, o governo não determinou praticamente nenhum detalhe operacional do programa.

Por exemplo, não se sabe ainda como o dinheiro anunciado para as escolas será usado, quantos militares haverá por escola ou a quem se recorre se houver algum problema.

Não há informações detalhadas no decreto que criou o programa, nas notícias sobre o projeto no site oficial do Ministério da Educação, nem foi publicada uma portaria com regulamentações.

O governo disse que irá liberar R$ 54 milhões anuais, o que dá R$ 1 milhão para cada uma das 54 escolas que pretende criar por ano — a ideia é criar 216 delas até 2023, diz o Ministério da Educação.

Mas a pasta não anunciou qual será o uso desse dinheiro — se vai ser investido nas escolas ou se pagará o salário dos militares, por exemplo.

Segundo informações obtidas pelo jornal O Globo via Lei de Acesso à Informação, o cálculo do valor foi feito visando somente a pagar o salário dos militares inativos que vão atuar nas escolas — que podem ser tanto bombeiros, policiais ou das Forças Armadas.

Imposição ou escolha?

Por enquanto, há dúvidas sobre os aspectos mais básicos do programa, como se as comunidades escolares nas unidades escolhidas para participar — alunos, pais e professores — poderão escolher aderir ou não.

Inicialmente foi anunciado pelo Ministro da Educação, Abraham Weintraub, que a comunidade escolar seria consultada e a parceria cívico-militar só seria implementada onde pais, professores e alunos concordassem. Ou seja, a adesão seria voluntária não apenas para os Estados, mas também individualmente para cada comunidade.

No entanto, após duas escolas em Brasília (de cinco que estavam sendo consideradas para o programa) votarem contra a implantação da parceria com os militares no local, o presidente Jair Bolsonaro defendeu “impor” o modelo.

“Se aquela garotada está na quinta série e na prova do Pisa não sabe uma regra de três simples, não sabe interpretar um texto, não responde a uma pergunta básica de ciência, me desculpa, não tem que perguntar para o pai, irresponsável nesta questão, se ele quer ou não uma escola, de certa forma, com militarização. Tem que impor, tem que mudar”, disse ele, em um evento.

O governador do DF, Ibaneis Rocha, disse que iria implementar o modelo “de qualquer jeito”, o que levou a atritos com o secretário da Educação, Rafael Parente. Pouco tempo depois o governador voltou atrás e decidiu só aplicá-lo nas escolas que o desejassem, mas Parente acabou exonerado.

“Caso se deseje realmente fazer esse experimento, está bem claro que ele não pode ser imposto para a comunidade, tem que ser por adesão”, afirma Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (CEIPE), da Fundação Getulio Vargas (FGV), professora visitante na Faculdade de Educação de Harvard e ex-ministra de Administração e Reforma, no governo Fernando Henrique Cardoso.

A BBC News Brasil perguntou ao Ministério da Educação se os Estados que aderiram ao programa receberam algum tipo de esclarecimento ou garantia extra além do decreto e das informações gerais já divulgadas, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

Quem vai administrar os militares?

A principal questão em aberto é sobre a governança das escolas e dos militares que irão atuar nelas.

Sabe-se apenas que os militares atuarão na administração — nada mais.

Não há regras sobre quem será o diretor (civil ou militar), como ele será escolhido, quantos militares vai haver por escola, se eles ficarão em todos os turnos, qual será seu papel, quem definirá esse papel, quem fará a governança dos militares das forças armadas, como será feito o planejamento, quem vai participar ou validá-lo etc.

A BBC News Brasil enviou essas perguntas ao Ministério da Educação, mas a pasta não respondeu.

Lousa
Image captionO governo não definiu a quem os professores vão recorrer se tiverem problemas com a atuação dos militares

“Essas perguntas sobre governança fazem todo sentido porque cada unidade federativa tem que olhar para sua rede e para as crianças e jovens no seu território e garantir que eles tenham acesso e tratamentos iguais”, afirma Claudia Costin, da FGV.

Também não está claro a quem a secretaria, os professores ou as escolas vão recorrer se tiverem problemas ou estiverem descontentes com a atuação dos militares.

“Quem administra a rede? O secretário vai ter poder para divergir do comando da escola?”, pergunta Costin.

As Forças Armadas, de onde vem parte dos militares que atuarão nas escolas, e as secretarias de educação são instâncias federativas diferentes e autônomas, que não respondem umas às outras, portanto a interlocução entre elas pode ficar complicada, diz ela. Também não está claro como será a relação com a PM e os bombeiros, que são estaduais.

Há dúvidas sobre como vai ser definida a hierarquia nas escolas, se os militares podem abandonar o programa a qualquer momento, se vai haver algum processo de seleção específico para os professores dessas escolas etc.

O prazo para os Estados aderirem ao programa terminou no fim de setembro (27), e eles tiveram de tomar as decisões antes de diretrizes oficiais com esses detalhamentos serem publicadas. Até o dia 27, o Distrito Federal e 15 Estados resolveram aderir.

Como será usado o dinheiro?

Dúvidas como essas fizeram o Estado de São Paulo hesitar quanto à participação ou não no programa. No dia do encerramento do prazo, o secretário de Educação do Estado, Rossieli Soares da Silva, enviou um ofício ao governo federal pedindo uma extensão do prazo e fazendo mais de 20 perguntas justamente como essas sobre o funcionamento do programa.

À Folha de S. Paulo, ele disse que é “difícil aderir a um programa que você não sabe o que é”. No dia seguinte, no entanto, apareceu em um vídeo, divulgado pela deputada do PSL paulista Letícia Aguiar, dizendo que conversou com o MEC para esclarecer pontos do projeto e que o Estado desejava aderir ao programa.

Crianças em ordem-unida
Image captionNão se sabe se haverá custos extras para as escolas e quem bancará esses gastos

No ofício enviado ao governo no dia anterior, o secretário havia feito — além de diversas perguntas sobre governança — questionamentos sobre como o recurso para as escolas será recebido e de que forma seria transferido, se será anual, qual será a periodicidade do recebimento, se contempla o pagamento do salário dos militares, qual será a remuneração média dos militares que atuaram nas unidades e se recurso será o mesmo independentemente do tamanho das escolas. No ofício, também questionava por quanto tempo está previsto o recurso anunciado de R$ 1 milhão por escola.

Também fazia questionamentos sobre aspectos pedagógicos que o governo ainda não definiu oficialmente, como qual a carga-horária diária que os alunos terão, se haverá disciplinas extras obrigatórias e se vai haver alguma mudança na rotina da escola.

A BBC News Brasil reenviou as mesmas perguntas que estavam no ofício ao Ministério da Educação e perguntou quais os eventuais esclarecimentos feitos aos governadores dos Estados que decidiram aderir, mas não recebeu resposta da pasta.

Frederico Amancio, Secretário de Educação de Pernambuco, um dos Estados que não aderiram, diz que a decisão de não participar do programa no momento veio em grande parte das dúvidas sobre como será o funcionamento das escolas.

“Não teve uma apresentação ampla. Em educação a gente não muda só por uma ideia, precisa ter uma proposta, precisa ter a oportunidade de conhecer melhor. E por enquanto não existem evidências de resultados desse modelo cívico-militar”, diz ele.

“Não sabemos qual será a participação dos militares, quem vai dar apoio, nem quantos serão. Três pessoa na escola vai mudar as escolas? Como vai se dar o processo de gestão? Quem vai dar a última palavra?”

Amancio diz que não descarta a participação no futuro quando tiver mais conhecimento do modelo. “O problema é que com as informações disponíveis hoje minha equipe técnica não sentiu segurança em aderir. Se eu entrasse também seria questionado do porquê.”

Custos extras

O governo ainda não explicou se vai bancar eventuais custos extras que as escolas possam ter com as novas regras militares.

Se os alunos tiverem de usar fardas, por exemplo — que custam mais caro que os uniformes normais das redes estaduais — não está claro se quem vai bancar é o governo federal ou as secretarias.

“Nas escolas que atualmente adotam o modelo de parceria cívico-militar, fora do programa, na verdade as escolas acabaram gastando mais dinheiro”, diz Costin, citando casos de unidades na Bahia e em Goiás.

Nem o salário dos militares é pago pelo governo federal, é dinheiro do orçamentos locais que é utilizado. “Você desvia a política educacional, a energia e os recursos da educação que já são escassos para profissionais que não são da área”, analisa Costin.

“Hoje olhando para as ‘receitas’ e políticas adotadas nos 30 melhores sistemas educacionais do mundo, não tem em lugar nenhum a conclusão que precisa ter escolas cívico-militares”, diz ela, que também foi Diretora Global de Educação do Banco Mundial entre 2014 e 2016.

“Lógico que o Brasil pode fazer experiências e ver se o modelo funciona, mas é preciso que esteja claro o que será feito e que, acima de tudo, não seja imposto, porque quem vai ficar com os resultados disso é a comunidade escolar.”

BBC

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