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A decisão sobre quilombolas de 2018 que pode definir futuro de indígenas

O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta quarta-feira (1/8) um julgamento que influenciará o futuro das demarcações de terras indígenas no Brasil.

Ao analisar uma demanda do povo indígena xokleng, de Santa Catarina, a corte avaliará a validade do conceito do chamado “marco temporal”.

A decisão terá repercussões para vários outros povos que pleiteiam a demarcação de territórios.

Em 2018, ao analisar o processo de criação de territórios quilombolas, o STF rejeitou a aplicação dessa tese, decisão que pode influenciar o julgamento atual (leia mais abaixo).

O governo Jair Bolsonaro e seus aliados ruralistas defendem que o conceito do marco temporal seja validado pela corte, medida que dificultaria novas demarcações.

Segundo defensores dessa posição, só podem reivindicar a demarcação de terras indígenas as comunidades que as ocupavam na data da promulgação da Constituição: 5 de outubro de 1988.

A tese vem sendo adotada formalmente pelo governo federal desde a gestão Michel Temer.

Na prática, a postura paralisou novas demarcações, já que grande parte dos processos pendentes trata de casos em que as comunidades dizem ter sido expulsas dos territórios antes de 1988.

Cerca de 6 mil indígenas estão acampados em Brasília há semanas em protesto para que o Supremo rejeite a tese.

A validade do conceito será abordada em um julgamento sobre uma reivindicação territorial do povo indígena xokleng, de Santa Catarina.

A corte vai avaliar se a Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ — habitada pelos xokleng e por outros dois povos, os kaingang e os guarani — deve incorporar ou não áreas pleiteadas pelo governo de Santa Catarina e pelos ocupantes de propriedades rurais.

A área em disputa se tornou formalmente parte da terra indígena em 2003, mas está parcialmente ocupada por plantações de fumo.

O governo de Santa Catarina diz que essa terra era pública e foi vendida a proprietários rurais no fim do século 19 — a área não estava, portanto, ocupada por indígenas em 1988.

Já indígenas afirmam que aquele território era usado pela comunidade para a caça, pesca e coleta de frutos, mas que décadas de perseguições e matanças forçaram o grupo a deixar a área.

Os xokleng foram um dos povos mais impactados pela ação de bugreiros — milícias contratadas até a década de 1930 para expulsar indígenas de territórios entregues a imigrantes europeus na região Sul.

O caso ganhou importância porque o STF determinou que a decisão sobre os xokleng terá repercussão geral.

Ou seja, se reconhecer que a demanda do grupo é legítima, haverá margem para que outras comunidades reivindiquem territórios dos quais dizem ter sido expulsas antes de 1988.

O julgamento já foi adiado e interrompido repetidas vezes — e é possível que volte a ser postergado mais uma vez.

Isso acontecerá se algum ministro pedir vista do processo, solicitando mais tempo para analisar o tema. Nesse caso, não haveria prazo para a retomada do julgamento.

Indígenas acampados em Brasília pressionam para que o caso seja julgado antes que a Câmara dos Deputados vote o Projeto de Lei 490, que está em fase final de tramitação.

Entre outros pontos, o projeto estabelece 1988 como marco temporal para a demarcação de terras indígenas.

Se o STF invalidar a tese do marco temporal no julgamento, porém, é provável que a Câmara tenha de alterar ou descartar o projeto.

Afinal, as decisões da corte se dão no nível da Constituição, que está acima de qualquer projeto de lei.

Já ruralistas pressionam para que o STF postergue o julgamento para depois da decisão da Câmara sobre o PL 490.

Eles esperam que, assim, o projeto seja aprovado na Câmara e que a decisão dos deputados estimule a corte a validar o marco temporal.

Outra possibilidade, caso o STF rejeite o princípio do marco temporal, seria enviar ao Congresso uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) — mas a aprovação dessa medida seria mais difícil, por exigir mais votos do que um Projeto de Lei.

Em 11 de junho, o relator do processo sobre os xokleng no STF, ministro Edson Fachin, votou contra a tese do “marco temporal”, mas o julgamento foi suspenso por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.

Desde então, o julgamento foi remarcado outras duas vezes, mas jamais concluído.

Como surgiu o conceito de ‘marco temporal’?

O conceito de “marco temporal” entrou no vocabulário ruralista em 2009. Na época, o então ministro do STF Ayres Britto propôs a adoção da tese ao julgar um caso sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.

A proposta de Ayres Britto buscava traçar uma linha temporal que restringisse as possibilidades de demarcações.

Um conceito semelhante, porém, já vigorava no decreto presidencial 3.912, de 2001, que regulamentava a criação de territórios quilombolas.

Segundo o decreto, só poderiam ser reconhecidas como quilombos as terras ocupadas pelas comunidades em 5 de outubro de 1988 — data de promulgação da Constituição.

O decreto, porém, foi revogado por outro decreto presidencial (na gestão do presidente Lula) publicado dois anos depois, de número 4.887.

O novo documento extinguiu a exigência de que as comunidades estivessem no local reivindicado em 1988.

Em 2018, o STF foi chamado a decidir se esse novo decreto cumpria as exigências constitucionais, provocado por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida pelo então PFL, atual DEM.

O caso teve como relator o então ministro aposentado Cezar Peluzo, que votou pela inconstitucionalidade do decreto.

Durante o julgamento, o ministro Dias Toffoli adotou uma posição intermediária: ele votou pela constitucionalidade do decreto, mas propôs a adoção de um marco temporal para o reconhecimento de quilombos.

Segundo Toffoli, a falta de um marco temporal dificultava a demarcação dos territórios e provocava insegurança jurídica.

“Não é ampliando, numa interpretação extensiva, sem limite temporal futuro, que se vai efetivar esse relevante direito (das comunidades quilombolas ao território)”, disse Toffoli.

“Pelo contrário, talvez tenha sido exatamente essa tentativa de se ampliar em demasia seu alcance que tenha retardado e tornado mais complexa a demarcação e a titulação definitiva dessas terras”, prosseguiu.

O ministro Gilmar Mendes concordou com Toffoli e também defendeu a adoção de um marco temporal.

Mas a posição dos dois em prol do marco temporal foi rejeitada pelos oito ministros restantes, que também decidiram pela validade do decreto presidencial que regulamentava as demarcações.

Em 2020, a ministra Rosa Weber julgou embargos de declaração (pedidos de esclarecimento) sobre o julgamento feitos por ONGs aliadas dos quilombolas.

Weber ficou encarregada da análise por ter sido a primeira ministra a divergir do voto do relator, inaugurando a posição que acabou vencedora no julgamento.

Com os embargos, as organizações pediam que o STF rejeitasse explicitamente a validade da tese do marco temporal.

Elas argumentavam que, embora a tese tivesse sido derrotada no julgamento, o ponto acabou excluído da ementa, a síntese da decisão.

O objetivo das organizações era fazer com que a corte rejeitasse formalmente a tese do marco temporal — o que poderia consolidar um entendimento para julgamentos futuros (“criar jurisprudência”, no linguajar jurídico).

Mas Rosa Weber avaliou que as organizações não poderiam ter feito os embargos de declaração, porque esse tipo de recurso não se aplica a Ações Diretas de Inconstitucionalidade — caso do julgamento sobre os quilombos

Ainda assim, Weber afirmou que no julgamento a corte “rejeitou a incidência da tese do marco temporal à possibilidade de reconhecimento da tradicionalidade das terras, aptas a configurar a propriedade coletiva das áreas pelos remanescentes de comunidades quilombolas”.

A decisão da corte no julgamento sobre os quilombolas sinaliza uma mudança da postura do STF em relação ao tema.

Em 2014, a Segunda Turma da corte rejeitou três demandas territoriais indígenas com base no marco temporal.

Quatro anos depois, porém, a tese foi derrotada no julgamento sobre os quilombolas.

E, em abril deste ano, a corte acolheu uma ação rescisória sobre um dos casos de 2014, abrindo o caminho para a anulação da decisão.

A mudança ocorre em um momento em que a questão indígena figura como um dos principais pontos de atrito entre o STF e o governo Jair Bolsonaro.

Em decisões recentes, a corte determinou que o governo elaborasse planos para combater a covid-19 entre as comunidades e expulsar invasores dos territórios.

Na semana passada, Bolsonaro indicou que poderá não respeitar uma decisão do STF contra o marco temporal.

“Se aprovado (o cancelamento do marco temporal), tenho duas opções, não vou dizer agora, mas já está decidida qual é essa opção, é aquela que interessa ao povo brasileiro, aquela que estará ao lado da nossa Constituição”, afirmou.

BBC

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